Hoje vou falar um pouco sobre
mim, embora o título deste texto seja de interesse da população. Mas o que vim
falar é sobre a influência da Saúde Pública na minha vida.
Muitas pessoas sabem da minha
carreira acadêmica, da paixão por pesquisas em imunologia, genes, moléculas,
citocinas, anticorpos monoclonais... Mas poucas sabem da minha paixão pela
Saúde Pública, na prática, nua e crua. Fui biomédica plantonista num hospital e
maternidade num dos bairros mais pobres e violentos de Recife - o Ibura -
durante 4 anos, e nesse período aprendi coisas que levarei comigo pro resto da
vida.
Vi pessoas carentes de
assistência e de atenção. Não atenção básica, atenção de olho no olho, de uma
palavra de esperança, de um abraço num momento de dor. Pessoas que só queriam
que alguém as escutasse, mas o "Dotô" não tinha paciência porque a
fila de pacientes estava grande. Vi meninas de 12, 13 anos grávidas, tomando um
"dudu" (ou sacolé) como uma criança feliz sem se preocupar com o que
estava por vir, enquanto esperavam para fazerem o Beta-HCG, e sem perceber que
eram duas crianças na verdade (mãe e filho) e não uma. Vi que até para os
bandidos existe algum tipo de ética. Sim, porque quando viam o adesivo do
estacionamento do hospital no meu carro, diziam: "deixa pra lá, ela é do
hospital", me poupando de assaltos ou coisas muito piores. Eu servia à
comunidade deles e não me arrependo.
Tive colegas de profissão
geniais e humildes, na mesma proporção. Tive colegas generosos, que davam uma
verdadeira lição de amor à medicina. Tive colegas idosos, com jeitão rude, mas
de coração imenso (abraço, seu Boni!). Fiz amigos verdadeiros, que sinto falta
até hoje. Mas vi também muita gente arrogante, tratando com desprezo e até
mesmo nojo, aquelas pessoas carentes de higiene e de educação, negligenciadas
pelo estado, pela vida.
Vi como a vida é efêmera, ao
diagnosticar uma leucemia numa criança de 5 anos e sentir a impotência na pele.
Vi como a vida é bondosa, ao conseguir atendimento com uma das melhores
hematologistas do Brasil para minha mãe e que a tratou com todo cuidado e
atenção - do mesmo jeito que ela tratava todos os pacientes. Independente de
quem fossem.
Aprendi que se quisesse
trabalhar lá, teria que me virar. Eu não era só a Doutora Daniele. Eu era faz
tudo. Consertar microscópio (sim, abrir, desmontar, limpar, trocar lâmpada),
fazer a manutenção de equipamentos, quebrar a cabeça por que a calibração não
deu certo, trabalhar com luvas tamanho G, porque as do tamanho correto não
foram compradas, ler mais de 100 lâminas por dia, porque os equipamentos eram
precários e não confiáveis e eu era a única biomédica plantonista do
laboratório. Ah, como me virei ali!
Acordar às 2h, às 4h, às 6h da
manhã - ou seja, não dormir - quando explodiu a epidemia de Zika virus e
ninguém sabia o que era e a toda hora eram pilhas de exames feitos. Aprendi a
lidar com pessoas grossas, pacientes ou não, e me impor para todos, sendo
respeitada no meu plantão. Aprendi a escutar, nossa, como aprendi a escutar.
Aprendi a calar também.
Na ciência, na pesquisa e no
ensino falamos mais do que escutamos: conferências, aulas, seminários,
palestras, apresentações de tese, de trabalho, de congressos.
Na Saúde Pública não. Falamos o
necessário e aprendemos a ouvir os pacientes, do jeitinho deles e conviver com
a desigualdade social todo dia, ali, gritando na sua cara e na sua consciência
quando você chega em casa e vê suas coisas, sua geladeira cheia, sua cama
confortável e agradece a Deus por tudo que você tem.
Escolhi ser biomédica porque
queria "fugir" desse contato próximo dos pacientes. Sou mole, choro
com tudo, me apego. Com o tempo, vi que as pessoas confundiam isso com fraqueza
emocional. Então criei uma casca, aprendi a ser grossa, aparento ser braba,
impositiva - tudo para disfarçar minha essência. Mas na Saúde Pública isso não
foi possível. Os pacientes chegavam a mim para perguntar do exame porque o
médico não explicou direito. Ou chegavam para contar da vida deles, de que
estava sem dinheiro para lanchar e teria que ficar ao lado do filho que foi
internado. Alguns descontaram em mim a raiva e frustração pela vida, e tive que
me calar e sofrer sozinha, porque no fundo eu entendia o desespero.
À noite, no plantão, deitava para
descansar com medo. Teve um tiroteio na comunidade e uma bala furou a parede do
repouso feminino. Era uma roleta russa. A porta também não tinha trava, já
tentaram entrar uma vez para furtar, mas graças a Deus nunca me aconteceu nada.
Sempre tive a proteção Divina, talvez por fazer meu ofício com resignação e
amor.
A Saúde Pública me ensinou a
ser mais compreensiva, paciente e a entender que eu não posso resolver os
problemas do mundo sozinha, mas que posso e devo fazer a minha parte.
Vi a Saúde Pública na sua pior
forma: sem remédios, sem leitos, sem luvas para trabalhar, sem equipamentos,
sem médicos suficientes, sem estrutura, sem segurança, mas ainda assim aquele
hospital era a única esperança de muitos.
Tenho um enorme carinho por
essa época, mesmo com tantos perrengues, mesmo ganhando pouco, mesmo passando
por situações difíceis e tendo que engolir o choro, mesmo com o medo constante
de estar num lugar violento. Tenho carinho porque fiz amigos. Tenho carinho
porque amadureci e aprendi a dar valor a tudo que tenho - sou rica, sou
abençoada por ter tido a oportunidade de estudar para ajudar essas pessoas de
alguma forma. Pessoas que eu não queria contato quando escolhi minha profissão
e que no final, me ensinaram tanto, em todos os plantões. Aprendemos todo dia,
na teoria e na prática e a Saúde Pública é uma grande lição de vida.
Daniele Van-Lume Simões 21 de setembro de 2016
Adorei, liçao de vida linda. Cada dia me orgulho de voce filha.
ResponderExcluirPainho! Te amo! Eu que tenho orgulho de ser sua filha! Bjos
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