domingo, 18 de dezembro de 2016

Homanegem ao cadáver desconhecido e o machismo

Lendo ontem um livro de crônicas de uma pessoa que adoro, me deparei com um texto que me deixou inquieta e quase tirou meu sono. Era um texto datado de 1995 e que havia uma parte que falava sobre pessoas que estão enriquecendo se utilizando de processos milionários e se fazendo de vítimas. Até aí, tudo bem.
Concordo que algumas pessoas processam outras pessoas ou empresas para ganhar um jabá fácil sobre algo que pode até ter sido irritante, mas não gerou traumas algum. Mas nesse texto havia um exemplo infeliz: funcionárias de uma empresa ganharam uma indenização milionária pois denunciaram o dono que se aproveitava delas sexualmente, seja tocando os seios sem permissão, seja falando grosserias e outras formas de perversão. No texto, dizia que havia coisas mais importantes para serem julgadas.
Pois aí eu discordei: se ganharam uma indenização milionária, eu acho é pouco. Deviam ganhar muito mais, embora moral e ética não estejam à venda, muito menos a intromissão sem a sua permissão no seu corpo.
Mas para a época era algo até aceitável, não havia grupos a favor de minorias, das vozes caladas por medo, vergonha ou humilhação - e aí entram as vítimas de racismo, homofobia e claro a mais antiga de todas, a cultura do estupro.
Nessa época, anos noventa, o personagem negro era sempre pobre ou alcoolista, o gay era efeminado e aidético e a mulher, ou era de Atenas ou era Geni. Não havia meio termo. As de Atenas passavam desapercebidas pois sequer tinham o direito de passar sozinhas. As demais, as normais, eram Genis que deviam ouvir caladas ameaças e grosserias ou até serem violentadas, caso estivessem usando uma roupa curta - claro, se usou é porque queria isso. Uma atrocidade. Ainda bem que, mesmo lentamente, isso vem mudando.
O estupro não precisa ser físico, pode ser verbal, com uma frase grosseira de cunho sexual quando você passa na rua correndo para não perder uma consulta médica ou ainda pode ser moral, quando seu superior ameaça demiti-la caso não faça o que ele pediu, ignorando sua cólica, seu filho pequeno na escola, sua vida "se vira nos 30" de dona-de-casa-profissional-esposa-mãe-filha. Enquanto seu colega na mesma função bate o ponto religiosamente às 17:30h.
Tudo isso vem do machismo, dessa cultura multi lados (oriente e ocidente) que ainda subjugam a mulher como ser inferior, sem opinião, sem vontade, sem razão, sem méritos. Sem desejos. Sem respeito. Sem vida. Violando não só o corpo, mas a honra, a integridade e a alma.
Pois bem, ontem estava sem computador pensando na crônica acima citada e lembrei, do nada, de algo que me marcou durante a faculdade: as aulas de anatomia humana.
Era um ambiente inóspito, com mesas de alumínio frias, corpos roxos, desconhecidos, olhos parecendo de vidro, um cheiro horrível e ao mesmo tempo fascinante. Era a morte servindo à vida. E placas, muitas placas chamadas "Homenagem ao cadáver desconhecido". Um dia me pus a lê-las e havia vários agradecimentos ao cadáver por ter servido à ciência e à sabedoria e à formação de profissionais de saúde para melhoria da vida humana. Uma das placas dizia até que sem eles, o conhecimento sobre o corpo humano, na sua forma mais fiel, não existiria e que esta era a forma mais nobre de ser lembrado.
Aquilo me tocou e passei a não achar mais graça das brincadeiras imaturas de estudantes de primeiro período sobre órgãos sexuais ou qualquer conotação depreciativa a estes corpos. Talvez a brincadeira acontecesse para tornar aquele momento um pouco mais leve, já que era um choque de realidade e muitos ali sequer haviam visto um morto, que dirá por dentro, dissecado, cortado. Mas parei de rir sobre o assunto.
E hoje me pergunto: que sociedade contraditória e louca é essa que vivemos em que um corpo de cadáver desconhecido é extremamente (e merecidamente) respeitado, honrado com placas e missas de agradecimento ao final dos cursos, enquanto que as mulheres que convivem conosco, em pleno século XXI, ainda precisam se defender de agressões à sua honra e ao seu corpo enquanto vivas? E provarem que a culpa não é, nunca foi e nunca será delas? Para mim é um grande paradoxo.
Vou morrer sem entender isto.

Daniele Van-Lume Simões   18 de dezembro de 2016


2 comentários:

  1. O machismo é enraizado e muitas vezes sutil à percepção até de quem pratics... isso é o resultado de anos e anos de lavagem cerebral. A pior parte disso é ver mulheres machistas, subservientes, objetificadas e "felizes" com esta condição. Aí enxergamos o tamanho do problema o trabalho que vai ser desmanchar essa merda toda! Massa teu texto amiga!!
    Bjo,
    Déa.

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  2. Menina, desmanchar isso acho que só com umas três encarnações!!! Machismo é uma das coisas mais nojentas que existem.

    Bjo

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